O maior carnívoro português
Alvo
de mitos e perseguições ancestrais, o lobo-ibérico continua a lutar pela
sobrevivência. Já só restam cerca de trezentos em Portugal. O biólogo Jorge
Nunes leva-nos às remotas zonas montanhosas onde se refugiam as últimas
alcateias e conta-nos toda a verdade sobre o “bicho mau”.
No
passado dia 30 de Maio, milhares de alunos do 9.º ano de escolaridade fizeram
pela primeira vez um teste intermédio de Ciências Naturais, disponibilizado a
todas as escolas do país pelo Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério
de Educação com o propósito de aferir o desempenho dos estudantes nessa
disciplina. Obviamente, por si só, este facto não mereceria destaque nas
páginas da SUPER, mas quis o destino que uma mão cheia de perguntas estivesse
relacionada com lobos, começando com um texto introdutório de que extraímos o
seguinte excerto: “Foi desenhado, por um grupo de alunos de uma escola
portuguesa, um projecto de Educação Ambiental: o projecto LOBO (…) teve como
objectivos determinar a distribuição e a densidade populacional do lobo na
serra da Aboboreira.” Findos os noventa minutos de exame, muitos alunos
questionavam-se pelos corredores e recreios sobre a veracidade do texto que
tinham lido e interpretado: “Mas ainda existem mesmo lobos em Portugal?”
Trago
à colação esta vivência escolar porque entendo que espelha bem a situação
ambígua em que têm vivido os lobos no nosso país. Se, por um lado, têm sido
motivo de estudo e preocupação para alguns investigadores e naturalistas
amadores (a propósito, o texto referia-se aos alunos e ao professor Manuel
Nunes, da Escola EB 2,3 de Vila Caiz, em Amarante, que levaram por diante o
meritório projeto), por outro, são animais quase totalmente desconhecidos da
maioria da população portuguesa, que tem acerca deles superstições pouco
condizentes com a realidade.
O
animal que a maioria das pessoas conhece é apenas o lobo mau das estórias e
lendas. E, afinal, quem é o lobo real? Será mesmo o bicho papão das histórias
infantis? Por que tem sido tão perseguido? Onde e como (sobre)vive? O que tem
sido feito para o proteger? Estas são algumas das dúvidas de alunos,
professores e muitos outros portugueses. Conheça finalmente o maior predador
da fauna portuguesa, que é também, desafortunadamente, um dos mais raros!
Retrato de um predador
À primeira vista, o lobo-ibérico (Canis lupus signatus)
poderá confundir-se com um cão de grandes dimensões. O que não é de admirar,
uma vez que pertencem ambos à mesma família (Canidae), onde também se inclui a raposa, e
ao mesmo género (Canis).
Pensa-se que o lobo se encontrava entre as primeiras espécies domesticadas
pelo homem, dando origem ao cão doméstico (Canis
lupus familiaris), o qual acabou por produzir, através de
exaustiva seleção artificial, diversas raças extremamente variáveis em termos
morfológicos.
Uma
observação mais cuidada permitirá, no entanto, notar marcas distintivas entre
cães e lobos. Assim, o lobo apresenta uma cabeça volumosa, de aspeto maciço,
de onde sobressaem as orelhas pequenas e os olhos oblíquos, de cor âmbar. O
focinho, geralmente ruivo, mostra uma região mais clara que vai desde a
garganta até ao ângulo externo do olho. A pelagem varia entre o
cinzento-escuro e o castanho (usualmente mais escura no inverno do que no
verão), sendo na maior parte dos indivíduos castanha-amarelada. No dorso,
surge uma linha negra, que se estende do pescoço à cauda, bem desenvolvida. O
ventre é claro. As patas são fortes e robustas e as dianteiras ostentam duas
manchas escuras nítidas na região anterior. Quanto às dimensões, é o mais
pequeno de todos os lobos (existem três espécies a nível mundial: o
lobo-vermelho, o lobo-da-Etiópia e o lobo-cinzento, a que pertence o
lobo-ibérico, subespécie endémica da Península). A altura ao garrote é de 70
a 80 centímetros, o comprimento total é de cerca de 1,20 metros e o peso
ronda geralmente os 30 quilos nas fêmeas e os 40 nos machos.
Porém,
os atributos do grande predador não se cingem aos seus aspetos morfológicos
visíveis. No interior da sua boca, escondem-se 42 dentes afiados que, em
conjunto com as possantes mandíbulas, lhe permitem despedaçar os ossos e
rasgar a carne das presas com relativa facilidade. Usando os incisivos e os
caninos, conseguem abocanhar e abater animais três vezes maiores do que eles
próprios.
A
compleição física, associada às caraterísticas do seu sistema
cardiorrespiratório, permite-lhe ainda outras habilidades dignas de um
distinto atleta. Além de poder dar saltos de aproximadamente cinco metros, é
capaz de percorrer 60 quilómetros numa única noite, de acelerar até 50
quilómetros por hora em apenas alguns segundos e de manter uma velocidade
média de cerca de 40 km/h durante períodos consideráveis.
Para
completar o arsenal mortífero, há que referir também os órgãos dos sentidos,
em especial a visão, muito apurada, sobretudo em situações de luz escassa,
como sejam o amanhecer e o anoitecer, e com um campo visual de 250 graus (o
humano não vai além de 180 graus), o olfato, que lhe facilita a leitura e
interpretação do mundo em seu redor (detetar inimigos, como o homem,
perseguir o rasto das presas, reconhecer os odores das fezes e da urina
utilizados para marcar os territórios e identificar os membros da alcateia) e
a audição, um ouvido sensível que lhe permite encontrar as presas e comunicar
a longa distância, através dos uivos caraterísticos.
A sua reputação como exímio caçador é tal
que, “se os cientistas do século XXI decidissem criar um robô capaz de
detectar e perseguir uma presa até a deixar sem vida, dificilmente
conseguiriam construir uma máquina mais eficaz que o lobo”, afirma Paulo Caetano
no seu livro Lobos em Portugal. O
mesmo autor refere ainda que “cada traço do seu ser, cada particularidade do
seu corpo, cada característica física (…) contribui para o tornar um predador
de excelência”.
Seres sociais
Contudo,
os lobos não são apenas habilíssimos caçadores, são também animais sociais
muito cooperativos. Vivem em alcateias, grupos familiares fortemente
hierarquizados, geralmente constituídos por um casal reprodutor que lidera o
grupo (a que os biólogos chamam “casal alfa”) e pelos restantes lobos, grosso
modo crias do ano e filhos e filhas de anos anteriores. Dado que atingem a
maturidade sexual aos dois anos, pelo menos até essa idade permanecem na
alcateia (alguns abandonam-na a partir desse momento com o intuito de
procurar parceiro sexual, encontrar território próprio e formar novas
comunidades).
O
número de membros nas alcateias portuguesas é bastante variável, podendo ir
de apenas dois (o casal alfa) até vinte e um, sendo de cinco ou seis
indivíduos o valor médio. Independentemente de quantos sejam, cabe-lhes caçar
e defender o território em grupo, respeitando sempre a hierarquia rígida e
bem definida, que só costuma ser abalada quando o alimento ou o espaço
escasseiam e os lobos que estão abaixo na cadeia hierárquica começam a afrontar
a liderança. Por vezes, principalmente no período de cio, podem registar-se
também mudanças no comando motivadas por jovens lobos que se impõem,
destronando o macho alfa e assumindo o seu lugar (o estatuto de macho
dominante pode manter-se durante alguns anos ou ser apenas temporário e durar
escassos meses).
Ao
casal alfa compete tomar todas as decisões coletivas, como os momentos,
locais e estratégias de caça ou os lugares e períodos de descanso ou de
deslocação pelo território. São também os únicos que podem reproduzir-se
(embora o macho beta, imediatamente abaixo do alfa, também possa copular com
a fêmea dominante). A fêmea alfa impede, com agressividade, que as restantes
lobas da alcateia tenham grandes intimidades com o macho dominante, garantindo
que durante o seu reinado todos os lobitos da alcateia sejam exclusivamente
seus filhos.
A
época de acasalamento ocorre apenas uma vez por ano, habitualmente entre
fevereiro e março. Após cerca de 60 dias de gestação, nascem as crias,
geralmente entre quatro e seis (conhecidas como “lobachos”). Após um mês de
amamentação, os pequenos lobos passam a ser alimentados e protegidos por toda
a alcateia. Por volta de outubro, com cerca de seis meses, começam a
acompanhar o grupo nas suas deslocações pelo território.
A
coesão no interior da alcateia é assegurada por um conjunto de comportamentos
que lembram constantemente a hierarquia social, visível sobretudo no momento
das refeições. O primeiro a aceder à comida é o casal alfa, seguido do macho
beta, e só depois os restantes membros da família que se impõem pela idade,
sexo e força física. Em suma, querem-se boas maneiras no momento da
alimentação, devendo cada membro respeitar a sua vez. Quem se atrever a furar
a fila acabará por ser severamente repreendido.
O
mais das vezes não é necessário chegar a confrontos físicos para manter cada
um no seu lugar e a ordem no grupo. Segundo os especialistas em comportamento
animal, são muitos os sinais e atitudes que permitem a comunicação entre os
companheiros, aspeto fundamental para o grupo coexistir e se entender. Entre
eles, destacam-se as expressões faciais (orelhas para trás indicam medo,
espetadas indiciam atenção ou ameaça), as vocalizações (que podem ir de
latidos de cumprimento até uivos de domínio territorial), as posições
corporais (arrastar-se em submissão ou assumir posição altiva de domínio) e
os posicionamentos da cauda (elevada no dominante e colocada entre as pernas
no submisso), entre outros.
O que vem à rede é… carne
Toda
esta linguagem corporal é particularmente útil durante as caçadas, quando a
alcateia reúne esforços e coletivamente persegue, captura e abate as suas
presas. Essas são muito variáveis, podendo ir de ungulados selvagens
(sobretudo corços e veados), que constituem a sua dieta principal, até
javalis, lebres, coelhos, raposas ou ginetas. E, quando a fome aperta, não
desdenham alimentar-se de ratos, pássaros, rãs, répteis e até mesmo de
insetos, como grilos e gafanhotos. Em casos extremos, para continuarem a
sobreviver, podem abandonar a caça devido à falta de presas e tornar-se
necrófagos. A captura de animais muito grandes (até três vezes superiores ao
seu tamanho) só é possível justamente pelo esforço coletivo: a união faz a
força!
Ainda
que os instintos predatórios sejam inatos na espécie, garantem os etólogos,
as brincadeiras, os jogos de luta e as caçadas simuladas ajudam a acicatá-los
durante os primeiros meses de vida. Logo que têm idade e corpo, os lobachos
começam a acompanhar os adultos nas expedições de caça, pois há imenso para
aprender (saber identificar as presas certas, como caçá-las, matá-las
rapidamente e sem perigo, e ainda como esquartejar e aproveitar as carcaças)
e nada substitui as lições práticas. A alcateia é a escola: observando os
mais velhos e imitando os seus comportamentos, os juvenis aumentam a sua
mestria na arte das caçadas.
Os
problemas começam a surgir quando o homem invade os seus territórios e dizima
as presas naturais, sobretudo através da caça. Ante a escassez destas, o lobo
aproxima-se das povoações e começa a caçar o gado e os animais domésticos. Em
desespero, a sua alimentação passa a fazer-se de ovelhas, cabras, vacas,
galinhas e até cavalos (que, diga-se em abono da verdade, até são bem mais
fáceis de caçar do que os selvagens).
Como
é bom de ver, estas situações podem causar avultados prejuízos pecuniários às
frágeis comunidades rurais e pastoris e são geradoras de ódios e conflitos
com as populações: o “lobo mau” torna-se de novo um alvo a abater, apesar de
ser uma espécie em perigo de extinção, totalmente protegida desde 1998, e de
integrar todas as convenções de proteção da vida selvagem: o Anexo II da
CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies de Fauna e Flora
Selvagens Ameaçadas de Extinção), o Anexo II da Convenção de Berna (Convenção
Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa) e
a Diretiva Habitats (92/43/CEE), onde consta dos Anexos II e IV como “espécie
prioritária”.
Em
Portugal, é proibido o abate ou captura de lobos e a destruição ou deterioração
do seu habitat. Entre as responsabilidades do estado português na conservação
e proteção efetiva do lobo, contam-se aspetos como a adoção de uma política
de ordenamento do território que não desfigure os habitats da espécie, a
promoção de ações de sensibilização da opinião pública, com vista à
erradicação de infundados temores e à modificação de atitudes e
comportamentos, e a indemnização dos cidadãos que venham a ser considerados
como diretamente prejudicados pela ação do lobo. Medidas que nem sempre é
fácil levar do papel para o terreno.
Mata que é lobo!
Outrora,
o seu uivo percorria o país de Norte a Sul. Hoje, as regiões mais recônditas
e montanhosas a norte do Douro são o seu principal, e quase único, refúgio.
Mesmo aí, continua a viver acossado, tentando passar despercebido e evitando
a todo o custo o contacto com os humanos. Digamos que é uma medida preventiva
para evitar males maiores, uma vez que, durante milénios (desde o Paleolítico
Superior que o lobo e o homem coexistem em Portugal), a maioria dos encontros
acabaram quase sempre em perseguição e morte do pobre animal.
Quando o objetivo era abater o “bicho
daninho”, como lhe chamavam algumas populações rurais, valia tudo. Desde as
matilhas de cães treinados para defender os rebanhos até às armadilhas,
passando pelos iscos envenenados e pelas armas de fogo. Se, nos métodos ditos
tradicionais, a luta, não sendo justa, poderia ainda dar alguma esperança de
fuga e sobrevivência ao perseguido, com o advento das armas de fogo, a partir
da década de 1930, os humanos tornaram-se verdadeiramente demolidores. O
estudo Lobos em Portugal, 1933/1957,
publicado em 1971 por Eric Flower, é disso um bom exemplo, ao referir o
número de lobos abatidos por distrito nesse período: 172 em Bragança, 222 na
Guarda, 112 em Portalegre, 126 em Viana do Castelo, 225 em Vila Real, 159 em
Viseu, 28 em Évora, 18 em Santarém (convém referir que por essa altura o lobo
ainda estava presente em todos os distritos portugueses, à exceção de Lisboa,
estimando-se que existissem cerca de 800 animais).
Porém,
o ódio aos bichos uivadores é tão ancestral que, mesmo antes do surgimento
das devastadoras espingardas, já o engenho humano procurava formas eficazes
de dizimar a besta, não se poupando a esforços para o conseguir. Entre as
obras mais notáveis de combate aos lobos contam-se os fojos, que as
populações atormentadas semearam desde a Idade Média pelo Noroeste Ibérico.
Eram armadilhas em pedra, construídas geralmente nas encostas dos montes,
simples e letais. Existiam essencialmente dois tipos: os fojos de paredes
convergentes (corredores delimitados por duas paredes que convergem para um
fosso, onde os lobos ficavam aprisionados até serem chacinados à pedrada ou a
tiro) e os fojos “de cabrita” (geralmente círculos de altos muros em pedra,
onde eram colocadas cabras, ovelhas ou cães como iscos vivos que atraíam os
lobos para uma morte certa).
Em
Portugal, os fojos foram utilizados pelo menos até meados do século XX: o
último “de cabrita” a ser usado foi o do Outeiro (com 72 metros de diâmetro,
o maior da Península Ibérica), que em 1917 ajudou a matar dois exemplares; a
derradeira batida num fojo de paredes convergentes aconteceu no Soajo, já no
final da década de 1970. Hoje, esses monumentos ao abandono nada mais são do
que memórias distantes e quase esquecidas que apenas alguns pastores e
caminheiros destemidos ousam contemplar.
Territórios lobeiros
No
início do século XX, o lobo-ibérico ocorria em quase todo o território
continental. No entanto, os fatores antrópicos já referidos (a que acresce
ainda a destruição dos habitats e a fragmentação dos territórios das
alcateias devido a novas estradas e vias rápidas) levaram a uma inquietante
regressão da sua distribuição, do litoral para o interior e de sul para
norte.
Na
década de 1960, os lobos ainda ocorriam no Algarve, no Alentejo e no vale do
Tejo, além do Centro e do Norte do país. Porém, de acordo com o último censo
nacional do lobo, efetuado em 2002/2003, a área de distribuição atual da
população lupina representa apenas cerca de 20 por cento da original. Ainda
que os territórios de cada alcateia possam ter vários quilómetros de
extensão (em Portugal, variam entre os 150 e os 300 quilómetros quadrados),
os bosques, os penedos sobranceiros aos cursos de água e as encostas arborizadas
são os seus locais preferidos.
Os lobos subsistem atualmente apenas nas
serras mais agrestes do Norte e do Centro de Portugal (caraterizadas por uma
baixa densidade populacional humana e por uma importante atividade
agropecuária), tendo os seus principais e mais estáveis núcleos de ocorrência
nas montanhas que constituem o Parque Nacional da Peneda-Gerês, o Parque
Natural de Montesinho e o Parque Natural do Alvão. Segundo o biólogo
Francisco Álvares, investigador do Grupo Lobo (http://lobo.fc.ul.pt,
uma associação não-governamental fundada em 1985), “devido à sua
estabilidade, estas populações são uma fonte regular de animais dispersantes,
tendo por isso uma influência determinante na manutenção das alcateias que ocorrem
nas regiões envolventes, caraterizadas por uma maior instabilidade”.
Um
dos desafios colocados à conservação da espécie é que a distribuição em
Portugal não é contínua, existindo duas populações separadas, estimadas em 65
alcateias, a que correspondem aproximadamente 300 lobos. A que se localiza a
norte do rio Douro conterá cerca de 270 indivíduos (abarca os distritos de
Viana do Castelo e Braga, uma pequena franja do distrito do Porto, na
confluência do sistema montanhoso Marão-Alvão, e os distritos nordestinos de
Vila Real e Bragança) e parece ser estável, dado que está em contato com a
população lupina espanhola, estimada em cerca de 2500 exemplares. A outra é
pequena e encontra-se isolada a sul do Douro (nos distritos de Viseu, Guarda,
Aveiro e Castelo Branco), com aproximadamente 30 animais que se encontram em
iminente perigo de extinção.
Luta pela sobrevivência
Uma
vez que a caça está totalmente proibida em Portugal, a convivência do lobo
com as comunidades rurais e pastoris é, na atualidade, um dos principais
fatores que colocam em risco a sua preservação: de quando em vez, os lobos
famintos atacam animais domésticos e rebanhos, provocando prejuízos que
motivam a revolta das populações e a atenção dos órgãos de comunicação
social.
Do
ponto de vista legal, não se justifica tanto alarido, uma vez que a
legislação que visa a proteção do lobo prevê indemnizações (têm sido gastos
cerca de 700 mil euros por ano) pelas perdas resultantes dos ataques lupinos.
O problema agudiza-se quando os proprietários são negligentes no resguardo
dos seus animais (“só há lugar a pagamento de indemnizações quando os animais
estiverem guardados por pastores e com um cão por cada cinquenta cabeças de
gado ou quando mantidos em locais que os confinem”, lê-se na legislação),
quando os ataques imputados ao lobo são, afinal, cometidos por matilhas de
cães assilvestrados, logo não passíveis de indemnização, ou quando os
processos indemnizatórios se arrastam em teias burocráticas que fazem
desesperar os lesados. Nesses casos, as comunidades prejudicadas tentam fazer
justiça pelas próprias mãos, perseguindo o lobo (caçando-o ou envenenando-o)
ao arrepio da lei.
Uma
forma curiosa de tentar apaziguar os conflitos tem sido através do projeto
Cão de Gado, lançado em 1994 pelo Parque Natural de Montesinho. Tratava-se de
uma iniciativa que visava a oferta e utilização, pelos criadores de gado, de
cães apropriados para a defesa dos rebanhos contra os ataques de lobo. Desde
1996, passou a ser uma iniciativa promovida igualmente pelo Grupo Lobo, que
tem comprado cães das raças castro-laboreiro e serra-da-estrela para oferecer
aos pastores (já foram dados mais de 230 cães). Tanto os pastores como os
mentores da iniciativa têm demonstrado satisfação com o projeto, liderado
pelo professor Petrucci-Fonseca, galardoado com o Prémio BES Biodiversidade
2010.
Além
da perseguição humana, outras causas silenciosas, como a destruição do
habitat e a fragmentação do território, têm contribuído igualmente para
acentuar o desaparecimento do lobo em Portugal. Um bom exemplo são os
incêndios, que todos os anos calcinam vastas áreas de mato e floresta,
degradam o habitat, destroem locais de criação e refúgio e expulsam as suas
presas. O mesmo acontece com os parques eólicos, que passaram a ser um
lugar-comum nas cumeadas dos montes. Embora sejam fontes de energia
renovável, que contribui para a redução de emissões poluentes, a abertura de
acessos e a sua construção e manutenção têm tido impactos negativos em
diversas alcateias, que viram os seus territórios devassados e destruídos.
Algumas empresas promotoras de parques eólicos mitigaram parte dos efeitos
destas estruturas através de programas de reflorestação e de reintrodução de
corço, a presa predileta dos lobos.
O
pior parece ser mesmo a construção desenfreada de estradas e vias rápidas que
vai retalhando o já escasso território disponível para as alcateias,
dificultando ou até mesmo impedindo a comunicação entre elas. Em muitos
casos, mesmo quando se fizeram estudos de impacto ambiental, as medidas
mitigadoras sugeridas não foram implementadas ou não surtiram os efeitos
desejados. Em apenas oito anos, foram contabilizados 24 lobos atropelados,
dos quais mais de metade nos traçados rodoviários a sul do Douro, o que, a
avaliar pelo reduzido efetivo populacional ali existente, representa um
impacto muito significativo na população lupina.
Lê-se nas considerações finais do relatório
técnico Situação Populacional do Lobo em
Portugal, Resultados do Censo Nacional 2002/2003, que é essencial
criar um Plano Nacional de Ação para a Conservação e Gestão do Lobo, o qual
“deverá envolver todos aqueles que têm, ou possam vir a ter, um papel ativo
na conservação desta espécie (e.g. criadores de gado, caçadores,
autarquias, juntas de freguesia, organizações não governamentais, administração
central, entidades promotoras de infraestruturas de comunicação e energia,
empresas consultoras da área de ambiente,...)”. Isto porque “a
responsabilidade pela manutenção do estado de conservação favorável é de
todos”. Portanto, é bom que pensemos no que pode ainda ser feito para que
continuem a ouvir-se os uivos do maior carnívoro português.
J.N.
Crendices populares
Desde
tempos imemoriais que o medo do lobo encontrou terreno fértil no imaginário
popular. A lenda mais conhecida é certamente a do lobisomem, uma criatura que
deixa a sua forma humana para se transformar em lobo nas noites de lua cheia,
durante as quais assombra vales, serras e aldeias com o seu uivo maldito.
Curiosamente,
apesar de ser um mito difundido por todo o mundo, encontra-se bem enraizado
na cultura popular portuguesa, um pouco por todo o país. Além de inúmeras
explicações para as causas que originam tão malvada sina (que vão desde
relações pecaminosas entre padrinhos e afilhadas até inusitados enganos nas
palavras sagradas proferidas no momento do baptismo), na povoação de Cambra,
nos arredores de Vouzela, existe mesmo uma caverna com o nome de Cova do
Lobisomem, onde o povo acredita que a besta se acoutava no final das
peregrinações noturnas enquanto esperava que o amanhecer lhe devolvesse o
aspeto humano.
Em
muitos lugarejos, sobretudo entre a população mais idosa, mesmo quem não
acredita em lobisomens considera muitas vezes que os lobos são perigosos e
encarnações vivas do demónio. São vistos como seres cruéis que atacam as
pessoas e os animais ou com poderes malévolos, cuja simples observação ou
audição poderá acarretar consequências terríveis, como a paralisia do corpo
ou a possessão por espíritos obscuros. Contudo, essas ideias não passam de
superstições ancestrais. Afinal, os ataques de lobos a humanos foram sempre
acontecimentos fortuitos: o último aconteceu na década de 1950 e foi
perpetrado por um animal que estava perturbado pela raiva.
Muita gente acredita que homens, mulheres e
crianças não são as únicas vítimas do “bicho danado”, que massacra também o
gado por puro prazer e contamina os animais domésticos, como os porcos. Estes
ficam afetados por uma doença extremamente contagiosa chamada “lobagueira”,
que tem como sintomas o “fastio e a tristeza, apatia, que invade todos os da
mesma corte e os definha até levar à morte”, relata o padre Fontes na sua Etnografia
Transmontana. Assim, como seria de esperar, se o lobo era a causa
da maleita, acreditava-se que também seria a cura. Por isso, sempre que um
lobo era morto, retiravam-lhe a traqueia, que depois de devidamente seca
serviria como amuleto curandeiro. “Assim obtinham as ‘golas’ – armas
indispensáveis, juntamente com uma boa dose de fé em milagres, para combater
a temida doença”, registou Paulo Caetano.
Mitos
ou realidades, uma coisa é certa: desde tempos recuados que os aldeões se
esforçaram por manter os lobos bem longe das aldeias, recorrendo a rezas,
ladainhas e responsos antigos.
Atualmente,
existe ainda uma outra ideia arreigada nas comunidades agropastoris das
regiões onde há lobos: se existem nesses locais, então é porque têm sido
libertados em grande número pelos fervorosos ecologistas com o intuito
sórdido de destruir o modo de vida de pastores e agricultores. Nada de mais
falso, dado que há décadas que não se fazem reintroduções de lobos na
natureza. Os poucos que ainda persistem em território português distribuem-se
de modo totalmente natural.
Porém,
o ódio ancestral ao lobo não se ficou pela tradição oral passada de pais para
filhos, de geração em geração. Também perdurou através da literatura (para
além de ter sido explorado até à exaustão no cinema!), na qual abundam
relatos de perseguições de lobos a viajantes incautos ou de alcateias que
atacam as aldeias em busca de vítimas humanas, já para não falar nos
constantes ataques aos rebanhos, entre outras lendas e estórias.
São muito poucos os textos que favorecem a
imagem do lobo e o tornam numa criatura mais afável e amiga do homem, como o Livro
da Selva. Nos mais variados contos, histórias e fábulas infantis,
como O Capuchinho Vermelho, Pedro
e o Lobo, A Raposa e o Lobo e O
Lobo e os Cordeiros, entre outros, este surge sempre como o “lobo
mau”.
Desde
Miguel Torga até Bento da Cruz, muitos foram os escritores portugueses que
incluíram o lobo nos seus escritos e romances. Porém, o exemplo maior será
certamente o de Aquilino Ribeiro, dado que as referências ao animal surgem
diretamente em muitas das suas obras ou através das suas personagens
serranas, que tinham sempre um “lado lupino”, como defende a bióloga Ana
Isabel Queiroz, estudiosa do seu trabalho literário.
Seja
como for, através da tradição oral ou da literatura, ou mais recentemente
pela ficção cinematográfica, as crenças populares, quase sempre infundadas,
em nada ajudaram a melhorar as relações de vizinhança entre homem e lobo. E
está mais do que provado que as mentalidades não se mudam por decreto!
SUPER 162 - Outubro 2011
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