Ruivaco do oeste adulto nascido no Aquário Vasco da Gama
Fotografia © DREm
geral, os peixes só são notícia quando aparecem mortos aos milhares devido a
uma qualquer descarga ilegal de poluentes. Ouve-se então falar de carpas,
pimpões, achigãs, barbos e bogas. Curiosamente, alguns destes nomes
referem-se a espécies originárias dos quatro cantos do mundo, que foram
invadindo (literalmente) os nossos ecossistemas dulçaquícolas. O biólogo
Jorge Nunes propõe uma viagem aos rios, lagos e albufeiras de Portugal, em
busca dos peixes de água doce. Dos “nossos” e dos “estrangeiros” que,
entretanto, se tornaram residentes.
Embora as cidades e
vilas portuguesas se localizem, quase todas, à beira-rio, permitindo um
convívio diário com idílicos cenários ribeirinhos, a maior parte das pessoas
desconhece os seus vizinhos fluviais, que habitam paredes-meias com as suas
casas e jardins. Os reflexos do azul do céu, do verde da folhagem e do
colorido dos panoramas nos espelhos de água são tão cativantes que
frequentemente nos esquecemos que por baixo deles também se nasce, vive e
morre como em qualquer outro lugar. Nesse desconhecido mundo subaquático,
onde tudo se passa longe dos indiscretos olhares humanos, a luta pela
sobrevivência é uma constante. Nunca se sabe quando é que de um buraco ou
detrás de uma pedra surge repentinamente uma boca esfomeada, quantas vezes
“estrangeira”, “exótica” ou “alienígena”.
Não interessa se começamos
esta jornada nos píncaros agrestes da serra do Gerês, fartos em água, ou na
árida paisagem alentejana, onde muitos dos ribeiros e lagoas desaparecem
sazonalmente com o calor do estio. Por norma, onde houver água existem, quase
sempre, peixes. Muitos deles são autóctones, ou seja, sempre viveram nos rios
portugueses; outros, ditos “exóticos”, têm vindo a ser introduzidos e a
conquistar terreno, que é como quem diz água, encontrando-se atualmente
disseminados em quase todos os habitats de água doce nacionais. Vinte e cinco
a trinta por cento do número de espécies piscícolas fluviais que vivem nas
águas doces de Portugal continental são exóticas, com origem nos quatro
cantos do mundo (seis espécies norte-americanas, sete euro-asiáticas e uma
sul-americana), e foram todas introduzidas pela mão do homem.
À boleia da malária
Ao que parece, a
introdução de peixes alienígenas visou, sobretudo, aumentar a diversidade
piscícola e o rendimento das águas interiores, aproveitando primordialmente o
enorme valor de algumas espécies, como o achigã e a truta-arco-íris. Além de
constituírem novos ingredientes gastronómicos, passaram a ser muito
procurados pelos amantes da pesca recreativa (lúdica e desportiva). Assim, a
chegada destes imigrantes aquáticos a terras lusas parece ter tido
essencialmente várias origens: por via acidental, como terá acontecido com a
tenca e a carpa (que fugiram de culturas monásticas), com o góbio (que se
escapuliu de pisciculturas) ou com o chanchito (utilizado em aquariofilia);
por via oficial, em que peixes como o achigã, a truta-arco-íris e a carpa
foram introduzidos sob responsabilidade das instâncias que têm tido a seu
cargo a gestão dos recursos aquícolas; por via informal, em que espécies como
o achigã, a gambúsia, o lúcio e o peixe-gato-negro, introduzidos intencional
ou acidentalmente na vizinha Espanha (onde já se contam 25 espécies exóticas,
15 das quais introduzidas depois de 1949), se expandiram pelos rios ibéricos
até águas portuguesas; e por via ilegal, através de alguns pescadores
desportivos que continuam a introduzir e a dispersar espécies ao arrepio da
legislação.
O flagelo da malária (doença infecciosa, também conhecida por
“paludismo”, causada por protozoários transmitidos pela picada de mosquitos
do género Anopheles), que
assolou Portugal e Espanha até meados do século XX, justificou a introdução
de espécies como o chanchito e a gambúsia. Estes peixes são famosos pelo seu
apetite voraz por larvas de mosquitos e havia esperança de que pudessem ser
uma arma eficaz na luta antipalúdica.
O chanchito (Cichlasoma
facetum),[foto] também conhecido por “espanhol”, “castanhola” ou
“castanheta”, é oriundo dos rios costeiros do Brasil e do Uruguai. Surgiu em
águas lusas na década de 1940 (segundo a Carta Piscícola Nacional,
terá sido introduzido no rio Vouga, na Praia de Mira, em 1943),
encontrando-se atualmente nas bacias dos rios do sul (Guadiana, Mira e
Sado), onde prefere os charcos e locais com águas tranquilas. Distingue-se
facilmente devido à coloração amarelo-metálico a esverdeado com bandas
escuras transversais. A barbatana dorsal é bastante comprida, alcançando dois
terços do comprimento total (que pode chegar aos 17 centímetros), e a
barbatana caudal é redonda e ostenta uma mancha escura na base. É uma espécie
insetívora. A sua territorialidade, sobretudo na época de reprodução, e a
alimentação carnívora fazem pressupor que seja uma ameaça para espécies
autóctones, apesar da sua dispersão e de a expansão ser muito pequena
Quanto à gambúsia (Gambusia
holbrooki), foi importada da Carolina do Norte em 1921 e foi
introduzida na Europa a partir de Espanha, tendo alcançado Portugal através
do seu principal rio ibérico: o Tejo (foi detetada no Sorraia, afluente do
Tejo, em 1931). É uma espécie de reduzidas dimensões, que faz lembrar um guppie
(os peixinhos ornamentais tão apreciados em aquariofilia). Tem um aspeto
inconfundível, com o corpo acentuadamente mais estreito para trás da
barbatana anal (onde se localiza o órgão copulador dos machos), a abertura
bocal colocada em posição dorsal com a maxila inferior proeminente e a
barbatana caudal homocerca. Vive em troços de águas lentas e temperadas, com
abundante vegetação e abaixo dos mil metros, e suporta águas muito
contaminadas, elevadas temperaturas e baixos valores de oxigénio.
Alimenta-se de pequenos animais aquáticos, insetos e aracnídeos.
Devido aos seus hábitos alimentares e ao facto de poderem atingir densidades
elevadas, de mais de 11.000 indivíduos por hectare, “tem um efeito negativo
sobre espécies nativas que ocupam o mesmo habitat”, segundo a Carta
Piscícola Nacional (CPN). Na Península Ibérica, ocorre em
praticamente todas as bacias, e em território nacional já conquistou inúmeros
rios, ribeiros e regatos. Após se ter constatado que, afinal, o efeito
controlador sobre os mosquitos transmissores da malária parecia ser reduzido,
ainda se tentou a sua erradicação, mas todas as tentativas resultaram
infrutíferas. Em pouco tempo, assistiu-se à imparável expansão dos pequenos
gambuzinos (curioso nome vulgar pelo qual também são conhecidos), por tudo o
que era curso de água. Também neste caso, como acontece com os homens, se
aplica o ditado popular: “Os peixes não se medem aos palmos”. Como derradeira
tentativa para limitar a expansão das suas populações, optou-se pela
introdução de outro peixe: o achigã. Assim, fixou-se na Península Ibérica
mais um “estrangeiro”, oriundo da América do Norte.
Imigrantes
americanos
O achigã (Micropterus
salmoides) foi inicialmente introduzido nos Açores (em 1898), e
só bastante mais tarde no continente (em 1952), com a finalidade de dinamizar
a pesca desportiva e limitar as populações de gambúsia. No entanto, tal como
as restantes espécies piscícolas exóticas, deu-se muito bem por cá e atualmente
é um dos peixes que despertam maior interesse, quer dos pescadores, quer dos
apreciadores de ementas de peixe (apresenta um elevado interesse
gastronómico, atingindo cinco a oito euros por quilo), encontrando-se por
todo o país, sobretudo na bacia hidrográfica do Tejo e a sul desta (está
presente em praticamente todas as albufeiras do sul, muitas do centro e
algumas do norte). É um peixe de tamanho médio, que atinge habitualmente meio
metro de comprimento. Possui o corpo alto, de coloração verde azeitona com
bandas escuras mais ou menos evidentes nos flancos, a boca de grandes
dimensões protráctil com dentes nas mandíbulas (o maxilar ultrapassa o bordo
posterior do olho), e a barbatana dorsal dividida em duas. É um predador que
se alimenta predominantemente de outros peixes e de lagostins-de-água-doce,
larvas de insetos aquáticos (como ninfas de libélula), insetos adultos,
aracnídeos, anfíbios e, ocasionalmente, micromamíferos e répteis. A CPN
declara que “esta espécie levou à redução das populações autóctones de
ciprinídeos”.
A perca-sol (Lepomis
gibbosus) faz jus ao nome: é um dos peixes mais belos entre os
que foram introduzidos em águas continentais portuguesas. Ostenta uma cor
muito vistosa, com bandas azuladas que irradiam da cabeça até aos flancos,
ventre amarelo e uma mancha negra e vermelha na parte posterior do opérculo.
Trata-se de um peixe que não ultrapassa os 15 centímetros, com barbatana
dorsal dividida em duas partes, uma primeira de raios ossificados e uma
segunda com raios ramificados. Trata-se de um habitante das zonas lênticas
(águas calmas), com escassa profundidade e densa vegetação. Suporta bem a
falta de oxigénio e as altas temperaturas. Trazida da América do Norte, terá
chegado à Europa no último quartel do século XIX para aquariofilia, embora só
tenha sido referida em Portugal (no Tejo, no Sado e no Guadiana) nos anos
1970. Na atualidade, está presente na totalidade das bacias hidrográficas.
Por detrás da sua atraente beleza, esconde-se, porém, uma terrível predadora
de insetos e de ovos e alevins de outras espécies aquáticas. É considerada
uma praga e uma das principais responsáveis pelo desaparecimento dos peixes
nativos.
O peixe-gato-negro (Amieurus
melas) é uma espécie originária da América do Norte que foi
introduzida em Espanha no início do século XX, tendo chegado a Portugal
através da bacia do Tejo (atualmente, já se encontra no Sado e no Guadiana).
Trata-se de um peixe de tamanho médio, que não vai além de meio metro de
comprimento. Tem uma coloração preta e a zona ventral amarelada. Possui
quatro pares de barbilhos, sendo um dos pares mais comprido do que as
barbatanas peitorais. O corpo está geralmente coberto com muco. É
extremamente tolerante à poluição, subsistindo em águas com baixos níveis de
oxigénio dissolvido e elevadas temperaturas.
Quanto às trutas, encontram-se representadas por duas espécies:
a truta-de-rio (Salmo
trutta), indígena da Europa, e a truta-arco-íris (Oncorhynchus mykiss),
originária da América do Norte. Enquanto a primeira vive em águas correntes,
bem oxigenadas, límpidas e frescas, e é muito sensível à poluição e à elevada
temperatura, a segunda prefere as albufeiras e os cursos de água calmos,
tolerando temperaturas até 25ºC (a sua distribuição é muito localizada,
figurando em albufeiras do Cávado, do Douro, do Mondego e do Tejo). Trata-se
de uma espécie de tamanho médio (pode chegar ao meio metro), com a cabeça
mais pequena do que a sua congénere autóctone. Apresenta duas barbatanas
dorsais (a primeira espinhosa e a segunda adiposa), e a barbatana caudal pode
estar completamente coberta de manchas negras. Possui, geralmente, uma lista
de cor púrpura no flanco, onde surgem igualmente manchas negras que não são
rodeadas por um círculo colorido (sendo esta uma boa característica para
distinguir ambas as espécies). A espécie exótica consome larvas de invertebrados
e peixes de pequeno tamanho. É presença habitual em aquacultura, devido ao
seu elevado interesse gastronómico.
Residentes euro-asiáticos
Curiosamente, por causa das trutas, mais precisamente das
truticulturas espanholas, foi introduzido o góbio (Gobio lozanoi), uma
espécie euro-asiática usada como alimento vivo. Assim se espalhou pelos rios
Douro e Tejo, onde é atualmente muito comum. Trata-se de um peixe que não
ultrapassa os quinze centímetros. Tem o corpo alongado, a cabeça pequena e
larga, a boca ínfera, um par de barbilhos que atingem o bordo posterior do
olho, o dorso escuro e os flancos com seis a onze manchas redondas e azuladas
alinhadas longitudinalmente. A barbatana caudal está bem fendida (com lóbulos
pontiagudos) e as ventrais estão posicionadas atrás da inserção da dorsal.
As carpas (Cyprinus
carpio) e as tencas (Tinca
tinca), espécies euro-asiáticas, ambas muito apreciadas como
alimento e de fácil reprodução em cativeiro, terão chegado a Portugal pelas
mãos de monges que as consumiam em dias santos, nos quais se impunha a
abstinência de carne. A ser verdade que a sua chegada poderá ter tido “mão
divina”, foi apenas uma questão de tempo e de oportunidade até que alguns
exemplares se escapassem das granjas agrícolas dos mosteiros, onde eram
cuidadosamente mantidas, para colonizarem os rios.
As carpas, que habitam
sobretudo as albufeiras e os cursos de água com corrente fraca e vegetação
abundante (com exceção das localizadas a norte da bacia do Douro), talvez
tenham chegado mais cedo, pois foram domesticadas pelos romanos e poderão ter
sido introduzidas por eles. São peixes de tamanho médio a grande (podem
atingir 80 cm), de cor variável (geralmente, verde-acastanhada), com os
flancos em tons dourados que escurecem em direção ao dorso. A boca apresenta
dois pares de barbilhos sensoriais, sendo terminal e protráctil, o que se
adequa à sua atividade essencialmente bentónica. Trata-se de uma espécie
resistente à escassez de oxigénio e à poluição, que destrói a vegetação
submersa, aumentando a turbidez dos rios.
Quanto à tenca, ainda
subsistem dúvidas se é natural ou se foi introduzida em Portugal. A CPN
inclina-se para esta segunda hipótese, assegurando que foi introduzida, no
século XII, pelos monges de Cister, nas granjas agrícolas próximas do rio
Alcoa (Alcobaça). É um peixe de fundo que habita preferencialmente em
albufeiras e em locais de fraca corrente (uma vez que suporta baixos níveis
de oxigénio dissolvido na água) e de vegetação abundante. O corpo alongado,
com pedúnculo caudal curto e alto, pode chegar aos 80 cm de comprimento.
Possui um único par de barbilhos nos lábios e apresenta coloração esverdeada,
que pode variar consoante o meio onde habita.
O alburno ou ablete (Alburnus
alburnus) é uma espécie originária do centro e do leste da
Europa. Foi introduzido em Espanha, na década de 1990, para pesca desportiva,
e acabou por chegar a Portugal através dos cursos de água internacionais. No
entanto, a primeira referência nacional refere-se à barragem do Caia, onde
terá sido introduzido por pescadores desportivos para servir de alimento a
outros peixes, como o achigã. Encontra-se na atualidade nas bacias
hidrográficas do Tejo, do Sado, do Mira e do Guadiana. Possui hábitos
gregários e exibe grande plasticidade, ocorrendo em sistemas lóticos e
lênticos, apesar de selecionar preferencialmente as zonas de menor
profundidade. Apresenta um regime alimentar carnívoro, consumindo sobretudo
insetos aquáticos, crustáceos e zooplâncton.
O lúcio (Esox
lucius), com uma distribuição circumpolar (essencialmente
norte-americana e euro-asiática), foi introduzido em 1951 no rio Tejo (em
território espanhol) passando posteriormente para Portugal (na década de 60
já estava presente no Guadiana). É um carnívoro territorial e solitário, que
pode atingir grandes dimensões (mais de um metro de comprimento) e apresenta
um corpo alongado, com focinho comprido e achatado. A boca é grande, a
barbatana dorsal é oposta à anal e muito posterior e ostenta coloração verde
ou esverdeada com manchas amarelas. Trata-se de um predador que começa por
comer invertebrados enquanto jovem, acabando, em adulto, a alimentar-se de
peixes (gambúsias, bogas, achigã, escalos, barbos e carpas),
lagostins-de-água-doce e anfíbios. Ocorre nas bacias hidrográficas do Cávado,
do Douro, do Tejo e do Guadiana. Escolhe preferencialmente troços lóticos de
corrente fraca e vasta vegetação, onde se dissimula para emboscar as presas.
O lucioperca (Sander
luciperca) é outra espécie oriunda do centro e do leste da
Europa, introduzida ilegalmente em Espanha, no decurso da década de 1970.
Presentemente, encontra-se em franca expansão no nosso país, estando
presente nas bacias hidrográficas do Cávado, do Ave, do Douro, do Tejo e do
Guadiana. Pode chegar aos 80 cm. Apresenta duas barbatanas dorsais
espinhosas, cabeça grande, boca com dentes proeminentes e fortes e maxilar
largo. O dorso é esverdeado, com oito a doze bandas escuras transversais. Os
adultos alimentam-se exclusivamente de peixes, sobretudo escalos. Por ser uma
espécie altamente especializada no consumo de peixes, tornou-se uma grande
ameaça para a fauna autóctone, lê-se na CPN.
O peixe-gato-europeu (Silurus
glanis) é, sem sombra de dúvida, a espécie dulçaquícola europeia
de maior envergadura, podendo atingir os dois metros e meio de comprimento e
mais de cem quilos de peso. A pesca desportiva motivou a sua introdução em
Espanha, na década de 1970. Por cá, está referenciado para o rio Tejo e andou
nas bocas do mundo no verão passado, quando um exemplar com um metro e meio,
avistado na albufeira de Castelo do Bode (rio Zêzere), foi confundido com um
crocodilo. Trata-se de uma espécie carnívora muito voraz, que se alimenta de
peixes, anfíbios, lagostins-do-rio e aves aquáticas.
A lista dos peixes introduzidos não ficaria completa sem referir
o pimpão ou peixe-dourado (Carassius
auratus), um parente próximo das famosas variedades de
peixes-vermelhos que apreciamos em pequenos aquários ou nos lagos dos
jardins. Parece ter sido um dos primeiros a chegar a Portugal, por volta do
século XVII, trazido da China, e daqui terá partido para vários países
europeus. Em estado selvagem, o pimpão perde a sua cor vermelha e
apresenta-se com uma tonalidade castanha-esverdeada. Vive em todos os rios
portugueses e hibrida com a carpa (machos de pimpão com fêmeas de carpa),
originando uma forma intermédia com apenas um par de barbilhos.
Convivência
difícil
O aumento da diversidade
piscícola que resulta das espécies introduzidas pode parecer, à primeira
vista, uma mais-valia. Porém, ao contrário de uma sã convivência, tem-se
assistido a um domínio preocupante dos novos inquilinos dos rios portugueses.
Os peixes exóticos têm tido
um aumento acentuado nas últimas décadas, sendo também de assinalar que
algumas das suas áreas de distribuição têm vindo a ser significativamente
ampliadas. Ambientaram-se tão bem aos nossos rios que alguns, como a carpa e
a perca-sol, são na atualidade as espécies dominantes em alguns lugares,
nomeadamente, em albufeiras do sul, como as do Vale do Gaio, do Pego do
Altar, de Maranhão e de Montargil.
Já não há dúvidas de que as
14 espécies introduzidas nas águas doces continentais vieram para ficar.
Embora algumas delas não revelem indícios de causarem desequilíbrios
significativos nos ecossistemas, como é o caso do chanchito, outras,
nomeadamente as que apresentam caráter invasor, como a perca-sol e a
gambúsia, poderão ser extraordinariamente prejudiciais para a fauna e a
flora dulçaquícolas autóctones: “A introdução de espécies não indígenas na
natureza pode originar situações de predação ou competição com espécies
nativas, a transmissão de agentes patogénicos ou de parasitas e afetar
seriamente a diversidade biológica, as atividades económicas ou a saúde pública,
com prejuízos irreversíveis e de difícil contabilização”, avisa o Ministério
da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Espécies autóctones migradoras
Alguns peixes autóctones,
ditos “migradores”, não se contentam com a extensão dos nossos rios e têm
horizontes mais largos, estendendo as suas viagens até ao mar. Uns
deslocam-se do meio marinho para o meio fluvial, a fim de se reproduzirem
(espécies anádromas), e após o nascimento, os juvenis iniciam a viagem em
sentido contrário. Outros, porém, nascidos no mar (como as enguias),
regressam aos rios para amadurecer (espécies catádromas). São animais muito
especiais, visto que tanto conseguem viver em água doce como salgada.
De entre os viajantes de longo curso, temos o sável (Alosa alosa),
referenciado nos rios Minho, Lima, Douro, Mondego, Zêzere, Sado e Guadiana; a
savelha (Alosa fallax),
muito comum em Portugal, sendo frequente nos rios Minho, Lima, Douro,
Mondego, Sado e Guadiana; a lampreia (Petromyzon
marinus), que vive no mar e pode atingir 1,20 m de comprimento, é
um peixe parasitário que sobe os rios até ao seu curso superior, onde desova;
e a enguia (Anguilla
anguilla), o verdadeiro ex-libris dos peixes migradores, uma
vez que inicia o seu ciclo de vida no mar dos Sargaços (localizado no Oceano
Atlântico, a mais de 4000 quilómetros da Europa), onde se reproduz, e
completa-o nas águas doces europeias, às quais as suas larvas chegam após um
a dois anos de travessia oceânica.
Com o estatuto de migradores surgem ainda a solha-das-pedras (Platichthys flesus), um
peixe achatado que reside nos estuários e se desloca às águas costeiras para
realizar a postura; a truta-marisca (Salmo
trutta), que inicia a subida dos rios no verão, preferindo águas
frias e bem oxigenadas para a desova (no estado adulto, pode atingir 1,40 m e
pesar 50 kg); o salmão (Salmo
salar), que se reproduz entre Junho e Novembro, em locais bem
oxigenados e em zonas a montante (nos rios em que nasceram); e o esturjão (Acipenser sturio), que
passa a maior parte da vida no mar, vindo reproduzir-se nos troços principais
dos rios Douro e Guadiana; a carne desta espécie é muito apreciada e as suas
ovas (caviar) constituem um requinte gastronómico de elevado preço.
Característica comum a todos os peixes migradores é o seu excelente sabor, o
que rapidamente os catapultou para o top das ementas de peixes e para cabeças
de cartaz de inúmeras feiras gastronómicas, competindo com os peixes marinhos
de melhor qualidade.
As espécies migradoras, no entanto, têm vindo a diminuir nos
nossos rios, tornando-se cada vez mais raras. Para além da sobrepesca, muitas
vezes desregrada e à margem da lei, há outras causas: obstáculos à migração
(como barragens, represas e açudes), que as impedem de atingir os locais mais
propícios à sua reprodução; alterações do habitat, principalmente devido à
extração de inertes; e poluição e destruição das zonas de desova. Impedidas
de se reproduzirem e sujeitas a captura desenfreada, facilmente se percebe
que algumas destas espécies sejam consideradas ameaçadas, de acordo como Livro
Vermelho dos Vertebrados de Portugal: salmão (criticamente em
perigo) e lampreia e savelha (vulneráveis). Segundo esta obra, reeditada em
2008, “os peixes dulciaquícolas e migradores correspondem ao grupo taxonómico
com a percentagem mais elevada de espécies classificadas com categorias de
ameaça ou quase ameaçadas (69% das 441 avaliadas).”
Não tem havido a precaução
sistemática de dotar os obstáculos, como barragens, represas e açudes, de
passagens para peixes. E, muitas vezes, quando tal preocupação existiu, as
passagens construídas mostram-se quase sempre inadequadas. No Douro, o efeito
de barreira é bem conhecido, pois os peixes só conseguem chegar à parte
terminal do rio, onde surge a primeira de várias barragens que amansaram as
suas águas revoltosas e impediram para sempre a subida destes migradores.
Curiosamente, nas albufeiras de Castelo de Bode (Zêzere) e Carrapatelo
(Douro), existem populações de sável que ficaram retidas pela construção das
respetivas barragens. Porém, estas populações constituem uma exceção, dado
que os indivíduos que as compõem conseguem nascer, crescer e reproduzir-se
exclusivamente em águas doces.
Preciosidades
a preservar
As joias da coroa dos nossos
rios e albufeiras são os peixes considerados endemismos portugueses
(boga-portuguesa, boga, ruivaco, ruivaco-do-oeste, escalo-do-Arade e
escalo-do-Mira) ou ibéricos (saramugo, barbo-do-norte, barbo-focinheiro,
barbo-de-cabeça-pequena, barbo-do-sul, barbo-de-Steindachner,
boga-de-boca-arqueada, boga-do-Guadiana, bordalo, panjorca, escalo-do-norte,
escalo-do-sul, verdemã e verdemã-do-norte). São todos catalogados como
espécies ameaçadas.
A boga-portuguesa (Chondrostoma
lusitanicum) foi dada a conhecer ao mundo científico em 1980 por
Maria João Collares-Pereira, investigadora da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa. Segundo fonte do Instituto de Conservação da Natureza
e Biodiversidade (ICNB), trata-se de uma espécie pouco abundante
(criticamente em perigo), que se encontra em regressão devido à alteração e
destruição do habitat, ao aniquilamento e perturbação das populações, à
introdução de novas espécies e ao isolamento geográfico. A sua distribuição
geográfica parece cingir-se a alguns troços terminais das bacias
hidrográficas do Tejo para sul. Mais recentemente (2005), foi descoberta a
boga Chondrostoma almacai,
que habita nos rios Mira, Arade e Bensafrim e se considera também
criticamente em perigo.
O ruivaco (Chondrostoma
oligolepis), que também só pode ser observado em Portugal, embora
pareça abundante e com populações estáveis, segundo dados do ICNB, pode ser
ameaçado pela destruição do habitat e pela introdução de espécies exóticas
nos cursos inferiores das bacias dos rios Douro, Vouga, Mondego e Tejo, onde
ocorre. Os autores que descreveram a espécie em 2005 propõem que lhe seja
atribuído o estatuto de conservação de “criticamente ameaçado”.
O escalo-do-Arade (Squalius
aradensis), descoberto em 1998, restringe a sua distribuição às
ribeiras de Seixe e de Quarteira, ocorrendo em Aljezur, Alvor e Arade (que
lhe deu o nome). Está criticamente em perigo e o aumento das pressões humanas
devido aos interesses turísticos, o agravamento dos períodos de seca, os
vários tipos de poluição e a introdução de espécies exóticas são alguns dos
principais fatores de ameaça. Já o escalo-do-Mira (Squalius torgalensis),
tal como indicia o seu nome comum, ocupa a bacia hidrográfica do Mira, onde
está criticamente em perigo. Pressões climáticas durante a época estival
associadas às pressões humanas devido aos interesses turísticos, à extração
de inertes que destrói as zonas de postura e a vários tipos de poluição são
algumas das causas para a sua regressão.
Dos peixes endémicos da
Península Ibérica, que existem apenas em Portugal e Espanha, merece destaque
o saramugo, que, com os seus 7 cm de comprimento, é o mais pequeno dos peixes
da família dos Ciprinídeos (na qual se incluem os barbos, as bogas, os
escalos, a carpa e o pimpão, entre outros) e um dos mais ameaçados de
extinção do mundo, estando a sua área de distribuição confinada a alguns
fragmentos da bacia do Guadiana.
De entre as cinco espécies de
barbos indígenas da Península Ibérica, quatro são consideradas raras. Estas
últimas ocorrem todas na bacia do Guadiana, embora o barbo-focinheiro também
possa ser encontrado no Tejo e o barbo-do-sul no Mira e em algumas bacias do
Algarve. Quanto ao barbo-do-norte, não se encontra ameaçado e é muito comum,
ocorrendo em todas as bacias hidrográficas, à exceção das do Mira e do
Guadiana e das ribeiras algarvias. Também as quatro espécies de bogas são
todas exclusivas da Ibéria, três das quais consideradas raras
(boga-portuguesa, boga-de-boca-arqueada e boga-do-Guadiana). Quer a
boga-de-boca-arqueada, quer a boga-do-Guadiana vivem principalmente naquele
grande rio do sul, onde são pouco abundantes e parecem estar em regressão.
Ameaças e conservação
Todos os peixes de água doce,
em especial as espécies consideradas ameaçadas, estão sujeitos a inúmeros
fatores que põe em causa a sua sobrevivência: poluição resultante de descargas
de efluentes não tratados de origem industrial, urbana e pecuária, assim como
a provocada pela utilização de pesticidas e fertilizantes na agricultura;
sobreexploração dos recursos hídricos, nomeadamente através da captação de
água para rega ou de transvases que provocam a diminuição dos caudais,
reduzindo drasticamente o habitat disponível; regularização dos sistemas
hídricos através da transformação dos cursos de água em valas artificiais;
extração de materiais inertes, com mudança da morfologia do leito do rio e
destruição da vegetação que serve de refúgio, alimentação e desova;
destruição da vegetação ribeirinha, através de ações de limpeza das margens
que diminuem as sombras dos cursos fluviais e alteram a temperatura e a
oxigenação da água e o regime dos caudais; introdução de espécies não
autóctones de maior interesse comercial ou desportivo (lúcio, achigã e
perca-sol, entre outras); efeito de barreira, provocado por barragens e
açudes que dificultam eventuais migrações, convertem as águas correntes em
águas paradas (alterando as suas características físico-químicas),
fragmentam as populações e alteram o regime de caudais a jusante da
construção; retenção de sedimentos a montante, agravando a erosão das margens
e alterando o leito do rio a jusante.
Urge definir normas
orientadoras do ordenamento e gestão dos recursos aquícolas, decidir e apoiar
medidas mitigadoras dos impactos ecológicos de obras fluviais e promover,
realizar e colaborar na execução de estudos de caráter técnico-científico. O
futuro dos nossos peixes de água doce passa, em grande medida, por essas
ações.
J.N.
Super 164 – Dezembro 2011
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