domingo, 2 de dezembro de 2012

A guerra dos peixes



Ruivaco do oeste adulto nascido no Aquário Vasco da GamaRuivaco do oeste adulto nascido no Aquário Vasco da Gama
Fotografia © DREm geral, os peixes só são notícia quando aparecem mortos aos milhares devido a uma qualquer descarga ilegal de poluentes. Ouve-se então falar de carpas, pimpões, achigãs, barbos e bogas. Curiosamente, alguns destes nomes referem-se a espécies originárias dos quatro cantos do mundo, que foram invadindo (literalmente) os nossos ecossistemas dulçaquícolas. O biólogo Jorge Nunes propõe uma viagem aos rios, lagos e albufeiras de Portugal, em busca dos peixes de água doce. Dos “nossos” e dos “estrangeiros” que, entretanto, se tornaram residentes.
Embora as cidades e vilas portuguesas se localizem, quase todas, à beira-rio, permitindo um convívio diário com idílicos cenários ribeirinhos, a maior parte das pessoas desconhece os seus vizinhos fluviais, que habitam paredes-meias com as suas casas e jardins. Os reflexos do azul do céu, do verde da folhagem e do colorido dos panoramas nos espelhos de água são tão cativantes que frequentemente nos esquecemos que por baixo deles também se nasce, vive e morre como em qualquer outro lugar. Nesse desconhecido mundo subaquático, onde tudo se passa longe dos indiscretos olhares humanos, a luta pela sobrevivência é uma constante. Nunca se sabe quando é que de um buraco ou detrás de uma pedra surge repentinamente uma boca esfomeada, quantas vezes “estrangeira”, “exótica” ou “alienígena”.
Não interessa se começamos esta jornada nos píncaros agrestes da serra do Gerês, fartos em água, ou na árida paisagem alentejana, onde muitos dos ribeiros e lagoas desaparecem sazonalmente com o calor do estio. Por norma, onde houver água existem, quase sempre, peixes. Muitos deles são autóctones, ou seja, sempre viveram nos rios portugueses; outros, ditos “exóticos”, têm vindo a ser introduzidos e a conquistar terreno, que é como quem diz água, encontrando-se atualmente disseminados em quase todos os habitats de água doce nacionais. Vinte e cinco a trinta por cento do número de espécies piscícolas fluviais que vivem nas águas doces de Portugal continental são exóticas, com origem nos quatro cantos do mundo (seis espécies norte-americanas, sete euro-asiáticas e uma sul-americana), e foram todas introduzidas pela mão do homem.
À boleia da malária
Ao que parece, a introdução de peixes alienígenas visou, sobretudo, aumentar a diversidade piscícola e o rendimento das águas interiores, aproveitando primordialmente o enorme valor de algumas espécies, como o achigã e a truta-arco-íris. Além de constituírem novos ingredientes gastronómicos, passaram a ser muito procurados pelos amantes da pesca recreativa (lúdica e desportiva). Assim, a chegada destes imigrantes aquáticos a terras lusas parece ter tido essencialmente várias origens: por via acidental, como terá acontecido com a tenca e a carpa (que fugiram de culturas monásticas), com o góbio (que se escapuliu de pisciculturas) ou com o chanchito (utilizado em aquariofilia); por via oficial, em que peixes como o achigã, a truta-arco-íris e a carpa foram introduzidos sob responsabilidade das instâncias que têm tido a seu cargo a gestão dos recursos aquícolas; por via informal, em que espécies como o achigã, a gambúsia, o lúcio e o peixe-gato-negro, introduzidos intencional ou acidentalmente na vizinha Espanha (onde já se contam 25 espécies exóticas, 15 das quais introduzidas depois de 1949), se expandiram pelos rios ibéricos até águas portuguesas; e por via ilegal, através de alguns pescadores desportivos que continuam a introduzir e a dispersar espécies ao arrepio da legislação.
O flagelo da malária (doença infecciosa, também conhecida por “paludismo”, causada por protozoários transmitidos pela picada de mosquitos do género Anopheles), que assolou Portugal e Espanha até meados do século XX, justificou a introdução de espécies como o chanchito e a gambúsia. Estes peixes são famosos pelo seu apetite voraz por larvas de mosquitos e havia esperança de que pudessem ser uma arma eficaz na luta antipalúdica.
O chanchito (Cichlasoma facetum),[foto] também conhecido por “espanhol”, “castanhola” ou “castanheta”, é oriundo dos rios costeiros do Brasil e do Uruguai. Surgiu em águas lusas na década de 1940 (segundo a Carta Piscícola Nacional, terá sido introduzido no rio Vouga, na Praia de Mira, em 1943), encontrando-se atual­mente nas bacias dos rios do sul (Guadiana, Mira e Sado), onde prefere os charcos e locais com águas tranquilas. Distingue-se facilmente devido à coloração amarelo-metálico a esverdeado com bandas escuras transversais. A barbatana dorsal é bastante comprida, alcançando dois terços do comprimento total (que pode chegar aos 17 centímetros), e a barbatana caudal é redonda e ostenta uma mancha escura na base. É uma espécie insetívora. A sua territorialidade, sobretudo na época de reprodução, e a alimentação carnívora fazem pressupor que seja uma ameaça para espécies autóctones, apesar da sua dispersão e de a expansão ser muito pequena
Quanto à gambúsia (Gambusia holbrooki), foi importada da Carolina do Norte em 1921 e foi introduzida na Europa a partir de Espanha, tendo alcançado Portugal através do seu principal rio ibérico: o Tejo (foi detetada no Sorraia, afluente do Tejo, em 1931). É uma espécie de reduzidas dimensões, que faz lembrar um guppie (os peixinhos ornamentais tão apreciados em aquariofilia). Tem um aspeto inconfundível, com o corpo acentuadamente mais estreito para trás da barbatana anal (onde se localiza o órgão copulador dos machos), a abertura bocal colocada em posição dorsal com a maxila inferior proeminente e a barbatana caudal homocerca. Vive em troços de águas lentas e temperadas, com abundante vegetação e abaixo dos mil metros, e suporta águas muito contaminadas, elevadas temperaturas e baixos valores de oxigénio.
Alimenta-se de pequenos animais aquáticos, insetos e aracnídeos. Devido aos seus hábitos alimentares e ao facto de poderem atingir densidades elevadas, de mais de 11.000 indivíduos por hectare, “tem um efeito negativo sobre espécies nativas que ocupam o mesmo habitat”, segundo a Carta Piscícola Nacional (CPN). Na Península Ibérica, ocorre em praticamente todas as bacias, e em território nacional já conquistou inúmeros rios, ribeiros e regatos. Após se ter constatado que, afinal, o efeito controlador sobre os mosquitos transmissores da malária parecia ser reduzido, ainda se tentou a sua erradicação, mas todas as tentativas resultaram infrutíferas. Em pouco tempo, assistiu-se à imparável expansão dos pequenos gambuzinos (curioso nome vulgar pelo qual também são conhecidos), por tudo o que era curso de água. Também neste caso, como acontece com os homens, se aplica o ditado popular: “Os peixes não se medem aos palmos”. Como derradeira tentativa para limitar a expansão das suas populações, optou-se pela introdução de outro peixe: o achigã. Assim, fixou-se na Península Ibérica mais um “estrangeiro”, oriundo da América do Norte.
Imigrantes americanos
O achigã (Micropterus salmoides) foi inicialmente introduzido nos Açores (em 1898), e só bastante mais tarde no continente (em 1952), com a finalidade de dinamizar a pesca desportiva e limitar as populações de gambúsia. No entanto, tal como as restantes espécies piscícolas exóticas, deu-se muito bem por cá e atual­mente é um dos peixes que despertam maior interesse, quer dos pescadores, quer dos apreciadores de ementas de peixe (apresenta um elevado interesse gastronómico, atingindo cinco a oito euros por quilo), encontrando-se por todo o país, sobretudo na bacia hidrográfica do Tejo e a sul desta (está presente em praticamente todas as albufeiras do sul, muitas do centro e algumas do norte). É um peixe de tamanho médio, que atinge habitualmente meio metro de comprimento. Possui o corpo alto, de coloração verde azeitona com bandas escuras mais ou menos evidentes nos flancos, a boca de grandes dimensões protráctil com dentes nas mandíbulas (o maxilar ultrapassa o bordo posterior do olho), e a barbatana dorsal dividida em duas. É um predador que se alimenta predominantemente de outros peixes e de lagostins-de-água-doce, larvas de insetos aquáticos (como ninfas de libélula), insetos adultos, aracnídeos, anfíbios e, ocasionalmente, micromamíferos e répteis. A CPN declara que “esta espécie levou à redução das populações autóctones de ciprinídeos”.
A perca-sol (Lepomis gibbosus) faz jus ao nome: é um dos peixes mais belos entre os que foram introduzidos em águas continentais portuguesas. Ostenta uma cor muito vistosa, com bandas azuladas que irradiam da cabeça até aos flancos, ventre amarelo e uma mancha negra e vermelha na parte posterior do opérculo. Trata-se de um peixe que não ultrapassa os 15 centímetros, com barbatana dorsal dividida em duas partes, uma primeira de raios ossificados e uma segunda com raios ramificados. Trata-se de um habitante das zonas lênticas (águas calmas), com escassa profundidade e densa vegetação. Suporta bem a falta de oxigénio e as altas temperaturas. Trazida da América do Norte, terá chegado à Europa no último quartel do século XIX para aquariofilia, embora só tenha sido referida em Portugal (no Tejo, no Sado e no Guadiana) nos anos 1970. Na atualidade, está presente na totalidade das bacias hidrográficas. Por detrás da sua atraente beleza, esconde-se, porém, uma terrível predadora de insetos e de ovos e alevins de outras espécies aquáticas. É considerada uma praga e uma das principais responsáveis pelo desaparecimento dos peixes nativos.
O peixe-gato-negro (Amieurus melas) é uma espécie originária da América do Norte que foi introduzida em Espanha no início do século XX, tendo chegado a Portugal através da bacia do Tejo (atualmente, já se encontra no Sado e no Guadiana). Trata-se de um peixe de tamanho médio, que não vai além de meio metro de comprimento. Tem uma coloração preta e a zona ventral amarelada. Possui quatro pares de barbilhos, sendo um dos pares mais comprido do que as barbatanas peitorais. O corpo está geralmente coberto com muco. É extremamente tolerante à poluição, subsistindo em águas com baixos níveis de oxigénio dissolvido e elevadas temperaturas.
Quanto às trutas, encontram-se representadas por duas espécies: a truta-de-rio (Salmo trutta), indígena da Europa, e a truta-arco-íris (Oncorhynchus mykiss), originária da América do Norte. Enquanto a primeira vive em águas correntes, bem oxigenadas, límpidas e frescas, e é muito sensível à poluição e à elevada temperatura, a segunda prefere as albufeiras e os cursos de água calmos, tolerando temperaturas até 25ºC (a sua distribuição é muito localizada, figurando em albufeiras do Cávado, do Douro, do Mondego e do Tejo). Trata-se de uma espécie de tamanho médio (pode chegar ao meio metro), com a cabeça mais pequena do que a sua congénere autóctone. Apresenta duas barbatanas dorsais (a primeira espinhosa e a segunda adiposa), e a barbatana caudal pode estar completamente coberta de manchas negras. Possui, geralmente, uma lista de cor púrpura no flanco, onde surgem igualmente manchas negras que não são rodeadas por um círculo colorido (sendo esta uma boa característica para distinguir ambas as espécies). A espécie exótica consome larvas de invertebrados e peixes de pequeno tamanho. É presença habitual em aquacultura, devido ao seu elevado interesse gastronómico.
Residentes euro-asiáticos
Curiosamente, por causa das trutas, mais precisamente das truticulturas espanholas, foi introduzido o góbio (Gobio lozanoi), uma espécie euro-asiática usada como alimento vivo. Assim se espalhou pelos rios Douro e Tejo, onde é atualmente muito comum. Trata-se de um peixe que não ultrapassa os quinze centímetros. Tem o corpo alongado, a cabeça pequena e larga, a boca ínfera, um par de barbilhos que atingem o bordo posterior do olho, o dorso escuro e os flancos com seis a onze manchas redondas e azuladas alinhadas longitudinalmente. A barbatana caudal está bem fendida (com lóbulos pontiagudos) e as ventrais estão posicionadas atrás da inserção da dorsal.
As carpas (Cyprinus carpio) e as tencas (Tinca tinca), espécies euro-asiáticas, ambas muito apreciadas como alimento e de fácil reprodução em cativeiro, terão chegado a Portugal pelas mãos de monges que as consumiam em dias santos, nos quais se impunha a abstinência de carne. A ser verdade que a sua chegada poderá ter tido “mão divina”, foi apenas uma questão de tempo e de oportunidade até que alguns exemplares se escapassem das granjas agrícolas dos mosteiros, onde eram cuidadosamente mantidas, para colonizarem os rios.
As carpas, que habitam sobretudo as albufeiras e os cursos de água com corrente fraca e vegetação abundante (com exceção das localizadas a norte da bacia do Douro), talvez tenham chegado mais cedo, pois foram domesticadas pelos romanos e poderão ter sido introduzidas por eles. São peixes de tamanho médio a grande (podem atingir 80 cm), de cor variável (geralmente, verde-acastanhada), com os flancos em tons dourados que escurecem em direção ao dorso. A boca apresenta dois pares de barbilhos sensoriais, sendo terminal e protráctil, o que se adequa à sua atividade essencialmente bentónica. Trata-se de uma espécie resistente à escassez de oxigénio e à poluição, que destrói a vegetação submersa, aumentando a turbidez dos rios.
Quanto à tenca, ainda subsistem dúvidas se é natural ou se foi introduzida em Portugal. A CPN inclina-se para esta segunda hipótese, assegurando que foi introduzida, no século XII, pelos monges de Cister, nas granjas agrícolas próximas do rio Alcoa (Alcobaça). É um peixe de fundo que habita preferencialmente em albufeiras e em locais de fraca corrente (uma vez que suporta baixos níveis de oxigénio dissolvido na água) e de vegetação abundante. O corpo alongado, com pedúnculo caudal curto e alto, pode chegar aos 80 cm de comprimento. Possui um único par de barbilhos nos lábios e apresenta coloração esverdeada, que pode variar consoante o meio onde habita.
O alburno ou ablete (Alburnus alburnus) é uma espécie originária do centro e do leste da Europa. Foi introduzido em Espanha, na década de 1990, para pesca desportiva, e acabou por chegar a Portugal através dos cursos de água internacionais. No entanto, a primeira referência nacional refere-se à barragem do Caia, onde terá sido introduzido por pescadores desportivos para servir de alimento a outros peixes, como o achigã. Encontra-se na atualidade nas bacias hidrográficas do Tejo, do Sado, do Mira e do Guadiana. Possui hábitos gregários e exibe grande plasticidade, ocorrendo em sistemas lóticos e lênticos, apesar de selecionar preferencialmente as zonas de menor profundidade. Apresenta um regime alimentar carnívoro, consumindo sobretudo insetos aquáticos, crustáceos e zooplâncton.
O lúcio (Esox lucius), com uma distribuição circumpolar (essencialmente norte-americana e euro-asiática), foi introduzido em 1951 no rio Tejo (em território espanhol) passando posteriormente para Portugal (na década de 60 já estava presente no Guadiana). É um carnívoro territorial e solitário, que pode atingir grandes dimensões (mais de um metro de comprimento) e apresenta um corpo alongado, com focinho comprido e achatado. A boca é grande, a barbatana dorsal é oposta à anal e muito posterior e ostenta coloração verde ou esverdeada com manchas amarelas. Trata-se de um predador que começa por comer invertebrados enquanto jovem, acabando, em adulto, a alimentar-se de peixes (gambúsias, bogas, achigã, escalos, barbos e carpas), lagostins-de-água-doce e anfíbios. Ocorre nas bacias hidrográficas do Cávado, do Douro, do Tejo e do Guadiana. Escolhe preferencialmente troços lóticos de corrente fraca e vasta vegetação, onde se dissimula para emboscar as presas.
O lucioperca (Sander luciperca) é outra espécie oriunda do centro e do leste da Europa, introduzida ilegalmente em Espanha, no decurso da década de 1970. Presentemente, encontra-se em franca expansão no nosso ­país, estando presente nas bacias hidrográficas do Cávado, do Ave, do Douro, do Tejo e do Guadiana. Pode chegar aos 80 cm. Apresenta duas barbatanas dorsais espinhosas, cabeça grande, boca com dentes proeminentes e fortes e maxilar largo. O dorso é esverdeado, com oito a doze bandas escuras transversais. Os adultos alimentam-se exclusivamente de peixes, sobretudo escalos. Por ser uma espécie altamente especializada no consumo de peixes, tornou-se uma grande ameaça para a fauna autóctone, lê-se na CPN.
O peixe-gato-europeu (Silurus glanis) é, sem sombra de dúvida, a espécie dulçaquícola europeia de maior envergadura, podendo atingir os dois metros e meio de comprimento e mais de cem quilos de peso. A pesca desportiva motivou a sua introdução em Espanha, na década de 1970. Por cá, está referenciado para o rio Tejo e andou nas bocas do mundo no verão passado, quando um exemplar com um metro e meio, avistado na albufeira de Castelo do Bode (rio Zêzere), foi confundido com um crocodilo. Trata-se de uma espécie carnívora muito voraz, que se alimenta de peixes, anfíbios, lagostins-do-rio e aves aquáticas.
A lista dos peixes introduzidos não ficaria completa sem referir o pimpão ou peixe-dourado (Carassius auratus), um parente próximo das famosas variedades de peixes-vermelhos que apreciamos em pequenos aquários ou nos lagos dos jardins. Parece ter sido um dos primeiros a chegar a Portugal, por volta do século XVII, trazido da China, e daqui terá partido para vários países europeus. Em estado selvagem, o pimpão perde a sua cor vermelha e apresenta-se com uma tonalidade castanha-esverdeada. Vive em todos os rios portugueses e hibrida com a carpa (machos de pimpão com fêmeas de carpa), originando uma forma intermédia com apenas um par de barbilhos.
Convivência difícil
O aumento da diversidade piscícola que resulta das espécies introduzidas pode parecer, à primeira vista, uma mais-valia. Porém, ao contrário de uma sã convivência, tem-se assistido a um domínio preocupante dos novos inquilinos dos rios portugueses.
Os peixes exóticos têm tido um aumento acentuado nas últimas décadas, sendo também de assinalar que algumas das suas áreas de distribuição têm vindo a ser significativamente ampliadas. Ambientaram-se tão bem aos nossos rios que alguns, como a carpa e a perca-sol, são na atualidade as espécies dominantes em alguns lugares, nomeadamente, em albufeiras do sul, como as do Vale do Gaio, do Pego do Altar, de Maranhão e de Montargil.
Já não há dúvidas de que as 14 espécies introduzidas nas águas doces continentais vieram para ficar. Embora algumas delas não revelem indícios de causarem desequilíbrios significativos nos ecossistemas, como é o caso do chanchito, outras, nomeadamente as que apresentam caráter invasor, como a perca-sol e a gambúsia, poderão ser extraor­di­nariamente prejudiciais para a fauna e a flora dulçaquícolas autóctones: “A introdução de espécies não indígenas na natureza pode originar situações de predação ou competição com espécies nativas, a transmissão de agentes patogénicos ou de parasitas e afetar seriamente a diversidade biológica, as atividades económicas ou a saúde pública, com prejuízos irreversíveis e de difícil contabilização”, avisa o Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Espécies autóctones migradoras
Alguns peixes autóctones, ditos “migradores”, não se contentam com a extensão dos nossos rios e têm horizontes mais largos, estendendo as suas viagens até ao mar. Uns deslocam-se do meio marinho para o meio fluvial, a fim de se reproduzirem (espécies anádromas), e após o nascimento, os juvenis iniciam a viagem em sentido contrário. Outros, porém, nascidos no mar (como as enguias), regressam aos rios para amadurecer (espécies catádromas). São animais muito especiais, visto que tanto conseguem viver em água doce como salgada.
De entre os viajantes de longo curso, temos o sável (Alosa alosa), referenciado nos rios Minho, Lima, Douro, Mondego, Zêzere, Sado e Guadiana; a savelha (Alosa fallax), muito comum em Portugal, sendo frequente nos rios Minho, Lima, Douro, Mondego, Sado e Guadiana; a lampreia (Petromyzon marinus), que vive no mar e pode atingir 1,20 m de comprimento, é um peixe parasitário que sobe os rios até ao seu curso superior, onde desova; e a enguia (Anguilla anguilla), o verdadeiro ex-libris dos peixes migradores, uma vez que inicia o seu ciclo de vida no mar dos Sargaços (localizado no Oceano Atlântico, a mais de 4000 quilómetros da Europa), onde se reproduz, e completa-o nas águas doces europeias, às quais as suas larvas chegam após um a dois anos de travessia oceânica.
Com o estatuto de migradores surgem ainda a solha-das-pedras (Platichthys flesus), um peixe achatado que reside nos estuários e se desloca às águas costeiras para realizar a postura; a truta-marisca (Salmo trutta), que inicia a subida dos rios no verão, preferindo águas frias e bem oxigenadas para a desova (no estado adulto, pode atingir 1,40 m e pesar 50 kg); o salmão (Salmo salar), que se reproduz entre Junho e Novembro, em locais bem oxigenados e em zonas a montante (nos rios em que nasceram); e o esturjão (Acipenser sturio), que passa a maior parte da vida no mar, vindo reproduzir-se nos troços principais dos rios Douro e Guadiana; a carne desta espécie é muito apreciada e as suas ovas (caviar) constituem um requinte gastronómico de elevado preço. Característica comum a todos os peixes migradores é o seu excelente sabor, o que rapidamente os catapultou para o top das ementas de peixes e para cabeças de cartaz de inúmeras feiras gastronómicas, competindo com os peixes marinhos de melhor qualidade.
As espécies migradoras, no entanto, têm vindo a diminuir nos nossos rios, tornando-se cada vez mais raras. Para além da sobrepesca, muitas vezes desregrada e à margem da lei, há outras causas: obstáculos à migração (como barragens, represas e açudes), que as impedem de atingir os locais mais propícios à sua reprodução; alterações do habitat, principalmente devido à extração de inertes; e poluição e destruição das zonas de desova. Impedidas de se reproduzirem e sujeitas a captura desenfreada, facilmente se percebe que algumas destas espécies sejam consideradas ameaçadas, de acordo como Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal: salmão (criticamente em perigo) e lampreia e savelha (vulneráveis). Segundo esta obra, reeditada em 2008, “os peixes dulciaquícolas e migradores correspondem ao grupo taxonómico com a percentagem mais elevada de espécies classificadas com categorias de ameaça ou quase ameaçadas (69% das 441 avaliadas).”
Não tem havido a precaução sistemática de dotar os obstáculos, como barragens, represas e açudes, de passagens para peixes. E, muitas vezes, quando tal preocupação existiu, as passagens construídas mostram-se quase sempre inadequadas. No Douro, o efeito de barreira é bem conhecido, pois os peixes só conseguem chegar à parte terminal do rio, onde surge a primeira de várias barragens que amansaram as suas águas revoltosas e impediram para sempre a subida destes migradores. Curiosamente, nas albufeiras de Castelo de Bode (Zêzere) e Carrapatelo (Douro), existem populações de sável que ficaram retidas pela construção das respetivas barragens. Porém, estas populações constituem uma exceção, dado que os indivíduos que as compõem conseguem nascer, crescer e reproduzir-se exclusivamente em águas doces.

Preciosidades a preservar
As joias da coroa dos nossos rios e albufeiras são os peixes considerados endemismos portugueses (boga-portuguesa, boga, ruivaco, ruivaco-do-oeste, escalo-do-Arade e escalo-do-Mira) ou ibéricos (saramugo, barbo-do-norte, barbo-focinheiro, barbo-de-cabeça-pequena, barbo-do-sul, barbo-de-Steindachner, boga-de-boca-arqueada, boga-do-Guadiana, bordalo, panjorca, escalo-do-norte, escalo-do-sul, verdemã e verdemã-do-norte). São todos catalogados como espécies ameaçadas.
A boga-portuguesa (Chondrostoma lusitanicum) foi dada a conhecer ao mundo científico em 1980 por Maria João Collares-Pereira, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Segundo fonte do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB), trata-se de uma espécie pouco abundante (criticamente em perigo), que se encontra em regressão devido à alteração e destruição do habitat, ao aniquilamento e perturbação das populações, à introdução de novas espécies e ao isolamento geográfico. A sua distribuição geográfica parece cingir-se a alguns troços terminais das bacias hidrográficas do Tejo para sul. Mais recentemente (2005), foi descoberta a boga Chondrostoma almacai, que habita nos rios Mira, Arade e Bensafrim e se considera também criticamente em perigo.
O ruivaco (Chondrostoma oligolepis), que também só pode ser observado em Portugal, embora pareça abundante e com populações estáveis, segundo dados do ICNB, pode ser ameaçado pela destruição do habitat e pela introdução de espécies exóticas nos cursos inferiores das bacias dos rios Douro, Vouga, Mondego e Tejo, onde ocorre. Os autores que descreveram a espécie em 2005 propõem que lhe seja atribuído o estatuto de conservação de “criticamente ameaçado”.
O escalo-do-Arade (Squalius aradensis), descoberto em 1998, restringe a sua distribuição às ribeiras de Seixe e de Quarteira, ocorrendo em Aljezur, Alvor e Arade (que lhe deu o nome). Está criticamente em perigo e o aumento das pressões humanas devido aos interesses turísticos, o agravamento dos períodos de seca, os vários tipos de poluição e a introdução de espécies exóticas são alguns dos principais fatores de ameaça. Já o escalo-do-Mira (Squalius torgalensis), tal como indicia o seu nome comum, ocupa a bacia hidrográfica do Mira, onde está criticamente em perigo. Pressões climáticas durante a época estival associadas às pressões humanas devido aos interesses turísticos, à extração de inertes que destrói as zonas de postura e a vários tipos de poluição são algumas das causas para a sua regressão.
Dos peixes endémicos da Península Ibérica, que existem apenas em Portugal e Espanha, merece destaque o saramugo, que, com os seus 7 cm de comprimento, é o mais pequeno dos peixes da família dos Ciprinídeos (na qual se incluem os barbos, as bogas, os escalos, a carpa e o pimpão, entre outros) e um dos mais ameaçados de extinção do mundo, estando a sua área de distribuição confinada a alguns fragmentos da bacia do Guadiana.
De entre as cinco espécies de barbos indígenas da Península Ibérica, quatro são consideradas raras. Estas últimas ocorrem todas na bacia do Guadiana, embora o barbo-focinheiro também possa ser encontrado no Tejo e o barbo-do-sul no Mira e em algumas bacias do Algarve. Quanto ao barbo-do-norte, não se encontra ameaçado e é muito comum, ocorrendo em todas as bacias hidrográficas, à exceção das do Mira e do Guadiana e das ribeiras algarvias. Também as quatro espécies de bogas são todas exclusivas da Ibéria, três das quais consideradas raras (boga-portuguesa, boga-de-boca-arqueada e boga-do-Guadiana). Quer a boga-de-boca-arqueada, quer a boga-do-Guadiana vivem principalmente naquele grande rio do sul, onde são pouco abundantes e parecem estar em regressão.
Ameaças e conservação
Todos os peixes de água doce, em especial as espécies consideradas ameaçadas, estão sujeitos a inúmeros fatores que põe em causa a sua sobrevivência: poluição resultante de descargas de efluentes não tratados de origem industrial, urbana e pecuária, assim como a provocada pela utilização de pesticidas e fertilizantes na agricultura; sobreexploração dos recursos hídricos, nomeadamente através da captação de água para rega ou de transvases que provocam a diminuição dos caudais, reduzindo drasticamente o habitat disponível; regularização dos sistemas hídricos através da transformação dos cursos de água em valas artificiais; extração de materiais inertes, com mudança da morfologia do leito do rio e destruição da vegetação que serve de refúgio, alimentação e desova; destruição da vegetação ribeirinha, através de ações de limpeza das margens que diminuem as sombras dos cursos fluviais e alteram a temperatura e a oxigenação da água e o regime dos caudais; introdução de espécies não autóctones de maior interesse comercial ou desportivo (lúcio, achigã e perca-sol, entre outras); efeito de barreira, provocado por barragens e açudes que dificultam eventuais migrações, convertem as águas correntes em águas paradas (alterando as ­suas características físico-químicas), fragmentam as populações e alteram o regime de caudais a jusante da construção; retenção de sedimentos a montante, agravando a erosão das margens e alterando o leito do rio a jusante.
Urge definir normas orientadoras do ordenamento e gestão dos recursos aquícolas, decidir e apoiar medidas mitigadoras dos impactos ecológicos de obras fluviais e promover, realizar e colaborar na execução de estudos de caráter técnico-científico. O futuro dos nossos peixes de água doce passa, em grande medida, por essas ações.
J.N.
Super 164 – Dezembro 2011

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